50 anos do Golpe: relato de Ubirajara Franco, demitido e preso pela ditadura

50 anos do Golpe: relato de Ubirajara Franco, demitido e preso pela ditadura

A princípio, queria deixar clara a minha posição, as minhas ideias diante da proposta de relatar o que ocorreu conosco às vésperas da eclosão do movimento militar que culminou com a deposição do então presidente da República, João Goulart, e quais as consequências posteriores e decorrentes das nossas posições como envolvidos no movimento sindical, em Santos.

Embora punido pelo regime militar, não guardo qualquer preconceito (outros diriam ódio ou discriminação) contra os fardados. Eles são parte do sistema, da estrutura social em que vivemos. Teremos nós propostas concretas ou até vontade coletiva para modificarmos o que aí está? Respondam!

Voltemos o assunto golpe militar de 1964 e consequências: estamos a apenas um mês para completar cinquenta anos dos acontecimentos. Ocorreu numa memorável manhã do dia 1º de abril (não é 1º de abri?) de 1964 (31 de março?).

O dia amanhecera nublado, acredito que os movimentos dos militares se iniciaram em 31 de março. Pois bem, a movimentação na cúpula da Petrobrás também se iniciou nessa época. Com o intuito de fortalecer a corrente nacionalista e manter o presidente João Goulart, nomeou-se o general Osvino Ferreira Alves para a presidência da Petrobrás. Para a refinaria de Cubatão foi nomeado para o cargo de superintendente o engenheiro Ismar Teixeira Barbosa, em substituição (então superintendente) do comandante Carlos Alberto Zavataro, que se destacaria para o exercício de diretor na direção central (Petrobrás).

Logo após assumir o cargo de superintendente, os militares já haviam desarticulado completamente o esquema de resistência do presidente Goulart (ignorávamos, éramos massa de manobra). Apesar das desinformações, o falido esquema tentou resistir e o superintendente recebeu ordens do general Osvino para paralisar a refinaria através de um telegrama. O referido telegrama nos foi mostrado. “Ordens superiores, obedeçam!”.

O telegrama foi encaminhado ao coordenador de turno Roberto Jatobá para que coordenasse a paralisação total e para que não se entregasse combustíveis às tropas que já haviam aderido ao movimento em São Paulo; e, se necessário, que o mesmo fosse adulterado com a adição de óleo diesel à gasolina!?

Qual o procedimento do coordenador de turno, Roberto Jatobá? Convoca os operadores chefes de turno para apresentação do telegrama para nós, operadores, externarmos nossa opinião. Ele, Jatobá, estava em cima do muro. Queria, dessa maneira, dividir responsabilidades.

Convocou os operadores das diversas unidades de processamento, aproximadamente oito trabalhadores. Apresentou o telegrama e nos consultou! Entreolhamo-nos (nós, operadores). Qual atitude? Um dos operadores presentes (não lembro quem) propôs que eu poderia externar o ponto de vista daquela coletividade, pois exercia cargo de conselheiro fiscal do Sindicato e, segundo eles, (ledo engano) estaria ou teria mais condições para responder por eles.

Minha resposta? Ordens superiores não se discute. Ou as cumprimos ou as desrespeitamos. A decisão cabe ao coordenador. E começou a encrenca. Partimos para cumprir a ordem. Nesse ínterim, o Exército já se aproximava da refinaria com tropas comandadas na época pelo major Erasmo Dias.

A encrenca começou na forma de resistência ao cumprimento das ordens recebidas principalmente na área de tanques (as tropas do exército já haviam se posicionado em pontos estratégicos (?) externos da refinaria). Na refinaria havia trabalhadores que não se afinavam com a decisão a ser tomada e também eram uma espécie de oposição oculta à diretoria do Sindicato (Geraldo Silvino). Persistimos no nosso trabalho. Nada conseguimos. Discussões. Questões de ordem. O exército triunfava e as adesões aos vencedores começou.

Aqueles sorrisos de simpatia, a solidariedade desapareceram. Deram-nos as costas e baixavam a cabeça quando nos viam. Estávamos estigmatizados. Fomos derrotados. E a encrenca teve prosseguimento.

Derrotados, cada qual por si procurou suas residências ou mesmo se “refugiaram”. Não havia qualquer coordenação ou ordem de alguém com maior experiência para nos orientar. Cada um por si. Voltaremos a nos reencontrar? Aguardemos os acontecimentos e os acontecimentos prosseguiram.

Estávamos acuados, assustados. Eu, em 1964, ainda não completara 32 anos. Havia ingressado na refinaria em fevereiro de 1955 – casado em junho de 1958 com 26 anos de idade. Seis anos após meu casamento me encontrava numa situação emocional complicada. Com aproximadamente 31 anos, ex-presidente do sindicato etc, não estava preparado para enfrentar as futuras consequências. Não havia como solucionar a questão. Acredito que a maioria dos protagonistas enfrentavam situação emocional similar.

Prossigamos. Instaurou-se os inquéritos policiais militares (IPM). Fomos indiciados. Após o desfecho, dia 2 de abril, apresentei-me ao serviço para trabalhar normalmente. Que ilusão. Havíamos sido dedurados pelos “companheiros”, cada qual querendo se livrar e encontrar um bode expiatório.

Cabe aqui nomear os companheiros que foram assolados no IPM. Engenheiro Victor dos Passos, Adilson Cubas, Adiston Soares Dias, Ernesto Ribeiro Neto, Jair Marcatti, Mauro Cunha, Joseilson Albuquerque Silveira, Oswaldo Ayres Fernandes, Rubens de Souza, Ubirajara de Araújo Franco, Vasco Oscar Nunes e Zoaines de Moraes Filho.

Cabe também nomear os ‘dedo-duro’, adesistas aos militares, pois não acreditávamos que fossem capaz de tal atitude. Eis eles: Roberto Jatobá, Geraldo Antonietti, Jorge Germano, Ciro Langobardi, Mauro Neves, Sebastião André de Assis, Casado e Bonfá (não lembro o primeiro nome dos dois últimos). Houve outros IPMs e mais testemunhas de acusação. Houve também outros companheiros acusados: Nelson Azeredo Coutinho, Farid Spitt, José Calheiros. Fomos afastados dos cargos que exercíamos.

Em 13 de abril de 1965 comparecemos diante do Ministério Público (Promotor Público) para sermos ouvidos – início dos depoimentos de cada um dos acusados no Fórum de Santos. Fui demitido da refinaria em 20 de julho de 1964. Começava então uma etapa de completa desorientação e procura de soluções momentâneas. O grande problema que assola qualquer trabalhador: o desemprego.

Com a experiência de aproximadamente 9 anos e seis meses na atividade de operador de processamento não conseguia me empregar nas indústrias ligadas ao ramo de petróleo ou petroquímica. Todas as empresas haviam recebido da direção da refinaria ou da própria Petrobrás uma lista com nossos nomes – a chamada lista negra. “Não os admita! São comunistas, agitadores”.

O que fazer? Em 23 de maio de 1966 fui trabalhar na Engebras, em Fortaleza (CE). Quem nos beneficiou para que fossemos aceitos (lembremos que a indústria que íamos trabalhar pertencia a Petrobrás) foi justamente o ex-superintendente da refinaria de Cubatão, Ismar Teixeira Barbosa, que na época era diretor da Engebras.

Quem nos acompanhou: o operador de tanques Braulio Vasconcelos e Gelásio Ayres Fernandes. Lá, no distante Ceará, a lista negra funcionou. Trabalhamos apenas 14 dias – de 23 de maio a 7 de junho. Repito, em 7 de junho já estávamos demitidos. Pergunta: era obra da ditadura militar? Absolutamente. Eram civis.

Para nosso azar, lá encontramos dois funcionários da refinaria de Cubatão. “Companheiros” que tinham sido transferidos para a fábrica de asfalto. Nomes: Wilson (operador) e Maia (laboratorista). O presidente da Petrobrás: civil Geonísio Barroso.

Ditadura militar? Retornamos a Santos. Nesse ínterim, os processos movidos contra nós na Justiça Militar estavam em andamento – havíamos sido indiciados em processos que corriam de 11 a 1º de setembro de 1966 – comparecíamos quando convocados em São Paulo (capital) à avenida Brigadeiro Luiz Antonio, 1249. Retornando às minhas tentativas de emprego, desisti de vez de exercer a profissão de operador de refinaria de petróleo. Exerci função de professor de matemática, carpinteiro, feirante, reparador de rádio e tv, montador de antenas e, no final, motorista de praça (estávamos no ano de 1969).

Em 12 de junho de 1969 fiz teste na empreiteira Montreal, em Cubatão, e fui admitido na função de encanador recebendo NCR$ 2,00 por hora, que alegria! Registrado em carteira, que alegria! Mudei de profissão. Que alegria, porém passageira.

Em 6 de agosto do mesmo ano (1969) fomos convocados a comparecer na 1ª auditoria de Guerra e ao término da audiência, condenados: eu, Ubirajara, José Wilson, Farid Spitti, Nelson Azeredo, Mauro cunha, Adiston Soares Dias Oswaldo Ayres a 3 anos de reclusão. Gelásio Ayres Fernandes a 4 anos de reclusão.

Como havia dito, alegria passageira; admitido em 12 de junho e demitido em 19 de agosto de 1969 (já estava preso). Permanecemos no Palácio da Polícia de Santos Acácio Nogueira de triste memória, até sairmos em liberdade condicional ao cumprir 1/3 da pena em 10 de janeiro de 1971 e recebemos na auditoria de guerra um salvo conduto (o próprio nome diz tudo).

Cadeia/Prisão Oito presos, oito famílias afetadas pela ausência de provedores. Sofrimento nas filas de espera para visitas às quartas-feiras e domingos. Humilhação dos familiares nas revistas. Em princípio, permanecemos junto com os contraventores, chamados de jogo do bicho. Fomos transferidos posteriormente para uma sala chamada “sala livre” dos políticos (éramos os políticos). Os carcereiros eram praças (soldados) da guarda civil, posteriormente absorvida pela Polícia Militar.

Liberdade. Reencontro com a família. Minha mulher e uma filha. E assim decorreram mais de 12 anos quando começaram a soprar os ventos da anistia. No decorrer desse período voltei a empregar-me a partir de 4 de março de 1971 na profissão de encanador industrial. Fui promovido a mestre e encarregado. Meu último emprego como mestre de tubulação foi na área da Cosipa – afirma! Enesa Engenharia (5 de agosto a 1º de novembro de 1985).

Fui readmitido na refinaria em 1º de setembro de 1985!? Trabalhava na Enesa e já estava readmitido na Petrobrás. Passaram-se então 21 anos e dois meses. Em 31 de dezembro de 1987 pedi demissão da refinaria – aposentei-me definitivamente.

É sempre bom lembrar que os que estavam nas barricadas e lutaram contra a chamada ditadura militar, anos de chumbo, etc, hoje estão no poder e os seus procedimentos não diferem muito daqueles a quem combatiam. São, na realidade, mais do mesmo.

Companheiros, o que estava sepultado em nosso íntimo, em nossas mentes há cinquenta anos, ressurge nesta oportunidade, talvez única e derradeira. Quero que lembrem sempre nossos companheiros de luta que conosco trabalharam. Falecidos uns e outros inválidos.

… Os anos de repressão, de fuga, de busca pela sobrevivência. A dor, sofrimento, a injustiça que duramente atingiu nossas famílias.

Lembremos sempre o nosso destemor em 31 de março de 1964. Quando nossos ideais, nossa consciência de trabalhadores esclarecidos, lutávamos pela legalidade e a justiça em nosso país. Culminou tão grande destemor na paralisação completa dos trabalhadores na refinaria, na parte da manhã do dia 1º de abril, em protesto contra usurpadores militares e civis que tentaram e conseguiram destituir o governo legalmente constituído de João Goulart, então presidente da República.

Cinquenta anos, um passado que ressurge através deste depoimento. São meus sentimentos e ao mesmo tempo uma convocação para que os operários permaneçam alerta nas suas lutas. Naqueles distantes anos nos enfrentamos, mas não estávamos preparados para o recuo.

Aquela geração de homens que trabalharam na refinaria de Cubatão, no período de sua construção até 1964, incluindo o movimento sindical da época no Brasil, conseguiu com sua pujança construir a base da pirâmide para uma nova geração de trabalhadores.

Concluindo, incluo neste depoimento nomes de companheiros que de forma pujante lutaram com dedicação para que aquela refinaria pudesse funcionar: Mário Dias (engenheiro), Roxo (operador) e Laudelíno (bombeiro), mortos em acidente (incêndio), em 1955. Romeu Ribeiro Bastos (operador chefe), João Carlos de Abreu (PBX e operador da mesma unidade) e José Carlos de Souza Aranha (operador), mortos em incêndio naquela unidade (UV).

Zoaine de Moraes filho, Adiston Soares Dias, Gelásio Ayres Fernandes, Nelson Azeredo Coutinho e Geraldo Silvino, todos falecidos.

Gratas lembranças dos companheiros Farid Spitti, Mauro Cunha, Joseilson de Albuquerque, Oswaldo Ayres Fernandes, Jair Marcatti e Ernesto Ribeiro Neto. Gratas lembranças também daqueles companheiros diretores dos diversos sindicatos da Baixada Santista com quem convivemos e que nos passaram muito da sua experiência. Lutadores pujantes. Enfim, homens. São lembranças.

Obrigado!

Ubirajara de Araújo Franco, em Santos, 31 de março de 2014
Em tempo: Luis Borba da Silva foi o primeiro presidente de “nosso” sindicato.

Deixe seu comentário

A entrega do pré-sal

Boletim Especial RPBC

Arquivos